O ENEM E OS DESAFIOS DE PENSAR SOBRE O OUTRO DA DIFERENÇA

Profa. Dra.Liliane Ferrari Giordani – Faculdade de Educação – UFRGS – 14/11/2017

Profa. Dra.Liliane Ferrari Giordani
Faculdade de Educação – UFRGS

A inclusão escolar tem se tornado um tema central das políticas educacionais na contemporaneidade, em todo mundo. No que se refere a educação de surdos, as praticas seculares de colonização perdem referências no surgimento dos movimentos de resistência das comunidades surdas. Movimentos questionadores das representações ouvintistas sobre as mentes e os corpos surdos, manifestações de contra cultura que pautam sua escolarização, os espaços de trabalho, lazer, muito para além do ‘reconhecimento’ e ‘oficialização’ da língua de sinais. A educação de surdos tem se pautado pela perspectiva da diferença cultural e lingüística, marcando uma contraposição com discussão das soluções prescritas nas políticas de inclusão a partir de um referencial que passa muito mais pela instrumentalização com interpretes de libras e constituição de sala de atendimento educacional especializado do que com o reconhecimento da diferença lingüística e do direito cultural. A passagem de uma escola excludente para uma educação para todos não se constitui apenas em uma ruptura de paradigmas dentro da educação especial, e, sim, é o resultado de uma série de transformações políticas, culturais e sociais que vão muito além de uma discussão do tipo educação especial versus educação regular.

Nas discussões que envolvem a educação de surdos até meados dos anos 90, os alunos surdos eram considerados incapazes de propor seus destinos educacionais. Os processos de ouvintização, traduzidos no colonialismo da língua e da cultura, impuseram práticas de escolarização que ganharam força nas políticas afirmativas introduzidas pelo movimento de inclusão. Um diálogo tenso entre educadores teve início no Brasil com a formação de professores surdos que tencionaram, através de um movimento de contra cultura, espaços de discussão sobre a diferença surda. As questões da diferença e da identidade cultural deveriam estar no centro dos debates educacionais, no entanto as políticas públicas, em nome do projeto de inclusão, têm investido na arquitetura de espaços únicos com territórios definidos pela universalização dos corpos e mentes. Num cenário mais amplo, ganham visibilidade grupos sociais e culturais que reivindicam o direito à afirmação de sua identidade e o respeito à sua diferença.

A escola que constitui um empreendimento humano, uma organização histórica, política e culturalmente marcada, deve ser entendida como um território em que indivíduos e grupos de diferentes interesses, preferências, crenças, valores e percepções da realidade mobilizam poderes e elaboram processos de negociação, pactos e enfrentamentos. A escola, na lógica normalizadora, toma para si e elege padrões culturais, passando, através do seu currículo, capturar os estrangeiros a essa cultura. São tentativas seculares que fracassam na ‘sobrevivência’ das culturas ‘periféricas’ mantidas vivas nos corredores e pátios da escola. Se o processo de significação girasse sempre em torno dos mesmos significados e se os mesmos significados fossem fixos, e se as marcas lingüísticas que utilizamos estivessem vinculadas a significados evidentes, não haveria ações de significação. As lutas por significado não se resolvem no terreno epistemológico, mas no terreno político, no terreno das relações de poder.

A possibilidade do outro surdo narrar a si próprio, dentro do espaço de fronteira ou do espaço pós-colonial, acontece, quando, por exemplo, os surdos se narram de uma forma oposicional às narrativas ouvintes, a partir das quais são inventados.  Colocando sob suspeita as narrativas ouvintes sobre sua língua, sua comunidade e suas produções culturais, os surdos apontam outras possibilidades para se pensar a surdez. Uma possibilidade que desmistifica as narrativas predominantes que falam em sujeitos que necessitam de correção, recuperação, reabilitação para se tornarem o quanto mais parecidos com a normalidade ouvinte possível.

O desafio de propor um tema de redação para ENEM, no ano em que candidatos surdos fazem pela primeira vez a prova em língua de sinais, traz a tona uma discussão que deve estar por dentro da escola na convivência da diferença entre surdos e ouvintes. Não deve ser estranho ou “muito específico” para os ouvintes pensar sobre seus amigos, colegas, pares surdos usuários de LIBRAS ou oralizados. Marcar uma posição em defesa da  surdez pela perspectiva da diferença cultural e linguística na construção de propostas educacionais que promovam o encontro com a diferença e que não retomem fantasmas do passado da ouvintização dos corpos e mentes é a grande contribuição do Enem em 2017.

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